quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

ADEUS, LENA MARIA, CAMARADA!

1. Há poucos anos, o meu velho companheiro de luta, Adolfo Maria, escreveu algumas palavras para o jornal português, “Público”, referindo o facto de a morte da Doutora Julieta Gandra não ter merecido sequer uma linha na imprensa portuguesa. Rui Araújo, actual Provedor do Leitor de Portugal, chama a esse esquecimento “uma desmemória (para não dizer outra coisa…)”.

2. As razões que levaram o Adolfo Maria a “protestar” contra tal “esquecimento”, prendem-se com o facto de a Doutora Julieta Gandra ter sido uma figura marcante no percurso da nossa luta de libertação nacional, juntamente com o Arquitecto António Veloso e o Engenheiro Calazans Duarte, cidadãos portugueses, tal como ela.

3. A Doutora Julieta Gandra, e os seus compatriotas, envolveram-se de tal modo no nosso processo político que foram presos, julgados, condenados e enviados para cumprir pena em Portugal, quando os seus companheiros angolanos do famoso “Processo dos 50” foram “penar” no Tarrafal, em Cabo Verde. Estávamos no início da luta de libertação nacional. Portanto, a Doutora Julieta Gandra pertenceu ao primeiro grande processo político do nacionalismo angolano moderno, pelo que é parte da nossa memória e da nossa história. Sobre ela disse ainda o Adolfo Maria: “Portou-se com coragem e dignidade, quer durante os interrogatórios da PIDE, quer nas cadeias a cumprir pena”. Em 1964, foi considerada pela Amnistia Internacional a Presa do Ano.

4. O meu velho companheiro Adolfo Maria, com quem falei ao telefone, há dias, em Lisboa, está de luto, porque acaba de perder a sua companheira de uma vida inteira – a Helena Maria, ela também nossa velha companheira.

5. Em Lisboa, o Engenheiro Simão Cacete informou-me que a Lena Maria estava em estado crítico, com um cancro no cérebro. Liguei de imediato para o Adolfo procurando informar-me sobre o estado de saúde da Lena, também sobre o ânimo do Adolfo, perante a triste e difícil conjuntura. Informei-me, também, sobre o percurso dos dois filhos do casal, o Mário Jorge e a Tonica. Na ocasião, foi a conversa possível com o meu velho companheiro de luta Adolfo Maria.

6. Infelizmente, não pude falar com a Lena Maria, pois ela estava hospitalizada, a convalescer da operação. Foi uma pena, porque já não falava com a Lena Maria desde que fui preso pela DISA, no longínquo ano de 1976, logo após a independência. Quer isso dizer que a memória que me resta da Lena Maria tem a idade de quase 35 anos.

7. Ainda bem que não vi a Lena Maria doente, possivelmente muito derreada, com rugas e olhar triste, voltada para as memórias do passado, consciente de que estava próximo o fim de um percurso de vida pleno de emoções, umas boas, outras más. A Lena Maria, nossa companheira de luta, conviveu com os momentos talvez mais marcantes da nossa luta de libertação.

8. A Lena Maria era portuguesa de nacionalidade, mas assumiu plenamente o projecto da nossa libertação nacional, ao lado do Adolfo. Fê-lo com alma, com o querer da mais profunda angolanidade. Fugiram de Portugal na juventude, quando a luta também dava os seus primeiros passos. Depois, atravessaram com os nossos companheiros os êxitos, os recuos, as vitórias, as derrotas, tudo quando foi acontecendo ao longo de 14 longos anos. A Lena Maria é, pois, uma peça integrante da nossa luta de libertação – faz parte dela, tal como a Doutora Julieta Gandra.

9. Conheci a Lena Maria no Congo-Brazzaville – estávamos, então, em dissidência com a direcção do Presidente Neto. Eu vinha de uma longa estadia na cadeia do Tarrafal. Ela de uma longa proximidade com a luta e com os dirigentes históricos da nossa luta.

10. A Lena Maria foi uma militante abnegada e uma mulher extraordinária, que nunca recuou perante as dificuldades. Atravessou as adversidades sempre com o sorriso de quem pretende apenas suavizar a dor… Conviveu com e viu desaparecer o Viriato da Cruz, o Matias Miguéis, o Hoji ya Henda, o Américo Boavida, a Deolinda Rodrigues, a Engrácia, a Irene Cohen, os comandantes gloriosos da nossa epopeia libertadora, o povo que serviu de sustentáculo e barreira sólida para a nossa vitória. A ela também devemos a nossa vitória.

11. A Lena Maria esteve lado a lado com o Gentil Viana, Mário de Andrade, Joaquim Pinto de Andrade, Maria do Céu Carmo Reis, Hugo de Menezes, Eduardo Macedo dos Santos, Amélia Mingas, Jota Carmelino, e outros, antes e depois na Revolta Activa.

12. Vencemos juntos o colonialismo mais anacrónico que a história conheceu. Com o nosso esforço, contribuímos para duas vitórias: a do povo angolano pela sua independência, e a do povo português, que assim se viu livre do fascismo, prestando um valioso serviço à humanidade.

13. A mulher do Adolfo Maria, a nossa querida companheira de luta, Lena Maria (que nem teve uma nota de rodapé a anunciar a sua morte), envolveu-se na nossa luta para servir o nosso povo, nunca para se servir do nosso povo.

14. Dissidentes, passámos juntos as dificuldades e as vicissitudes da dissidência. Até que sobreveio, novamente, a prisão. No dia 13 de Abril de 1976, iniciou o processo de encarceramento de alguns dos mais temidos membros da Revolta Activa (pelo menos, era essa a percepção do regime). O poder instituído decidiu que o melhor lugar para nós era a prisão – não tínhamos direito à independência, muito menos à liberdade.

15. A DISA começou a caça ao homem. Prendeu o Gentil Viana, prendeu a mim e aos meus dois irmãos (Vicente e Merciano), encarcerou o Fernando Paiva, Manuel Videira, Brooks de Sousa e Santos, Rafael Goddinho, António Capita, Luís Lukamba Vinge, os irmãos António Menezes e Talangongo Totoy Monteiro, e mais outros dissidentes. Buscaram o Adolfo Maria, também para o prenderem. Mas, o Adolfo Maria sentiu-lhes o cheiro e “mergulhou” na clandestinidade. Esteve “mergulhado” por um período de três anos.

16. O “mergulho” do Adolfo Maria foi o mais espectacular que a nossa história moderna conheceu. O Adolfo “mergulhou” em plena cidade de Luanda. Nas barbas da DISA, com os esbirros à sua procura, para o juntarem a nós, no “cangaço”, nos calabouços. E nós sem sabermos o que lhe tinha acontecido. Receávamos que tivesse sido apanhado e, depois, morto…

17. No “cangaço”, na cadeia, o Gentil Viana, nosso companheiro de muitas cumplicidades, mantinha uma olímpica serenidade. Nunca nos disse que o Adolfo sobrevivera à razia… Guardava essa informação a sete chaves… Depois, viemos a saber que o Gentil, o Joaquim e a Lena Maria eram os únicos que sabiam do “mergulho” e conheciam o local do “mergulho” do Adolfo. O Adolfo Maria, frágil fisicamente como parecia, portou-se como um verdadeiro tubarão…

18. E a Lena Maria sempre a fazer de conta… Para despistar os esbirros… Ia à DISA perguntar pelo paradeiro do marido. De lágrimas nos olhos, com ar de viúva inconsolada... Continuava a ir trabalhar. Que, volta e meia, chorava… Que toda a gente a via como a viúva que nem tinha tido a oportunidade de receber o corpo do marido, “assassinado” pelos seus próprios camaradas.

19. Passados três anos, o Adolfo Maria emergiu do seu longo “mergulho”. Emergiu tuberculoso, com uma longa barba, a ver mal… Saiu da clandestinidade, depois de um contacto que o Joaquim Pinto de Andrade estabeleceu, de boa-fé, com o Presidente Neto. Mas o Presidente Neto expulsou para Portugal o nosso antigo companheiro de luta, o Adolfo Maria, como se ele fosse cidadão estrangeiro, como se fosse algo incómodo à nossa terra finalmente libertada.

20. A DISA colocou o Adolfo Maria num avião, e fê-lo partir da sua pátria – Angola – pela qual tinha lutado. Um nacionalista angolano, branco, partiu para Portugal, de onde saíra quase 20 anos antes, entregando-se integralmente à luta de libertação. Este é um facto que ainda hoje me choca. É algo que não consigo entender, à luz dos valores e princípios que defendíamos na altura. Foi uma grande ingratidão. Não tem qualquer reparação possível, porque a vida só se vive uma vez.

21. O meu velho companheiro, Adolfo Maria, perdeu agora o outro lado da sua vida, a Lena Maria. E todos nós perdemos uma companheira de enorme mérito e grande valia. Nos alicerces desta pátria está, também, bem firme, o seu humilde tijolo. Adeus, Lena Maria, camarada! Paz à tua alma!

2 comentários:

  1. Querido Tio não conheci essa Camarada, mas lembro-me bem da vossa luta por esta martirizada Pátria. Um dia a Historia há-de ser contada sem as "falhas de memória" que os atuais contadores da História demonstram ao escreve-la. Aí sim, essa Camarada, tú e todos aqueles que deram o seu abnegado contributo para que hoje possamos estar independentes terão o seu digno reconhecimento por todo o vosso contributo. Até lá, só nos resta a consolaçao de sabermos que por mais "lapsos de memória" que eles demonstrem, a nossa memória continua fresca e que isso eles nunca poderão apagar. Nös sabemos quem são os nossos Heröis!

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  2. Este texto é um libelo acusatório por um lado e memorial por outro, pois resgata de certo modo a dignidade dos brancos que pugnaram por uma Angola multi-racial e independente. É bom ver que haja quem de modo simples e despojado assuma o direito à participação histórica de pessoas, não as avaliando pela cor da pele ou pelos seus antecedentes culturais ou de nacionalidade (ser-se branco e de ascendência portuguesa é de certo modo um anátema). O que verdadeiramente qualifica os seres humanos como cidadãos dignos são os respectivos percursos pessoais. Não tenho visto recentemente em páginas de angolanos análises com esta objectividade.

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