1. A minha memória regista uma interessante imagem de 1984, o ano em que conheci a Costa do Marfim, quando fui frequentar um curso sobre Análise e Gestão de Projectos patrocinado pelo Banco Africano de Desenvolvimento, e destinada a quadros superiores de vários países africanos. Conto em poucas palavras.
2. Um dia, ao regressarmos ao hotel, o Hotel Sebroko, situado nos arredores de Abidjan, depois das aulas, deparámo-nos com um camião acidentado na estrada. Chama-nos de imediato a atenção não só a aparatosa imagem do acidente mas, também, o ar de profundo desalento do motorista. De entre nós, alguém inquiriu, então, o motorista do nosso autocarro sobre o porquê do estado de alma do homem do camião. A resposta saiu sem dificuldade, e foi dada nos seguintes termos: “Na Costa do Marfim, quem danifica um bem público comete um crime que é severamente punido! Esse motorista já sabe o que o espera – seguramente, vai para a prisão!”. A resposta colocou os angolanos da comitiva, a olharmos uns para os outros, num misto de espanto e curiosidade…
3. Na altura, antes, e mesmo ainda mais tarde, em Luanda, quem partisse um carro do Estado era “premiado”, quase de imediato, com um outro carro. Aqui entre nós, o infractor geralmente não sofria quaisquer consequências.
4. Estávamos, pois, na época da impunidade, uma impunidade que fazia parte do nosso quotidiano. Os bens do Estado eram sistematicamente maltratados, usados com descuido e sem respeito. Por detrás desse comportamento estava a ideia de que, sendo bens do povo, e sendo o povo uma figura incorpórea e abstracta, não havia autoridade moral para se punir.
5. Um outro facto ainda despertou a minha curiosidade, na Costa do Marfim: o modo como as crianças das escolas do ensino de base trajavam. As crianças vestiam de forma elegante e bem cuidada – fossem eles rapazes, fossem elas raparigas. Isso evidenciava a preocupação das autoridades para com a educação e o ensino. Mostrava também que o orçamento para a educação tinha carácter prioritário e era gasto de modo correcto e eficaz. O ensino de base era o espelho.
6. Guardo ainda na memória a imagem da liberdade com que se circulava em frente à Grande Maison do Presidente Félix Houphouët-Boigny, em Yamoussoukro, a cidade que tinha sido no ano anterior elevada à categoria de capital política do país. Yamoussoukro deixara para Abidjan o título de capital económica e comercial. Em Yamoussoukro era permitido fotografar a Grande Maison, assim como os crocodilos do lago artificial situado mesmo junto ao Palácio.
7. Tenho mais outras memórias agradáveis daquele país. Por vezes, conto-as aos meus amigos. Talvez um dia me decida a trazê-las para o papel, para as partilhar com mais gente… Será também uma forma de as rememorar.
8. A Costa do Marfim foi um país próspero e organizado, mas, agora, caiu na desordem social e na confusão política. Já é uma má referência para o nosso continente.
9. Na Costa do Marfim, percebi facilmente o porquê de aquele país se ter transformado num pólo de atracção para as populações dos países limítrofes. Cerca de 1/3 dos seus habitantes provinham do Mali, do Burkina Faso, do Ghana, da Libéria ou da Guiné-Conacry. Os africanos das redondezas buscavam lá, sobretudo, trabalho. Alguns eram refugiados políticos que vinham fugidos de países onde campeava a intolerância. Por isso, para uns o país era um bom porto de abrigo, já que tinha uma economia muito próspera; para outros, não obstante vigorasse um regime de partido único, havia, ainda assim, alguma segurança e, sobretudo, paz.
10. A Costa do Marfim era o maior exportador mundial de cacau, o terceiro maior exportador de café, um grande exportador de madeira, também de óleo de palma, algodão, copra, abacaxi, banana, açúcar, etc. Tinha um bom sistema financeiro e sentia-se que a classe média estava em expansão. Contudo, nas actividades directamente ligadas à produção, quer agrícola, quer industrial, era notória uma forte dependência da força-de-trabalho estrangeira. O comércio era dominado por originários da Ásia, em especial, por libaneses.
11. Ouvi dizer que o Presidente Félix Houphouët-Boigny achava que o pior que poderia acontecer à Costa do Marfim seria lançar-se também na exploração petrolífera, porque o petróleo mataria as restantes actividades económicas, muito em especial, a agricultura e a indústria transformadora. Tinha como referência o que aconteceu com a Nigéria que, de país agrícola, um verdadeiro celeiro agrícola, passara a país importador de alimentos. Era isto que fazia com que o Presidente Félix Houphouët-Boigny estimulasse os jovens quadros cedendo-lhes terra e criando facilidades de créditos para a produção agrícola. Nesse sentido ele era, pois, um visionário.
12. Félix Houphouët-Boigny governou em regime de partido único desde a independência, em 1960, até ao ano de 1990. Depois abriu o país ao multipartidarismo e ganhou as eleições de 1990. Morreu em Dezembro de 1993. Com a sua morte, o castelo de cartas desmoronou.
13. O sucessor de Félix Houphouët-Boigny, Henri Konan Bedié aguentou-se no poder até 1999, quando foi derrubado por meio de um golpe militar comandado pelo general Robert Gueï que, por sua vez, foi assassinado. Seguiu-se Laurent Gbagbo, em 2000, e a guerra civil, e a separação, na prática, entre o norte, muçulmano, e o sul, cristão ou animista.
14. O norte, a área por excelência virada para a produção agrícola, é a zona de maior influência do ex-primeiro-ministro Alassane Ouattara, declarado vencedor do recente pleito eleitoral pela Comissão Eleitoral Independente. Aqui começa, pois, o problema que se arrasta até ao presente momento.
15. A guerra civil entre o norte e o sul teve como detonador uma lei que Laurent Gbagbo fez aprovar, aparentemente para impedir a eleição dos estrangeiros. Perante essa lei, Alassane Ouattara seria considerado estrangeiro, pois é filho de mãe burkinabe – mesmo que o pai seja marfinense.
16. Assim, Laurent Gbagbo retirava do caminho o seu adversário mais temido. Limitava também os direitos a outros milhões de marfinenses que são o fruto das migrações. Fez ainda tábua rasa do contributo desses homens e mulheres que ajudaram a Costa do Marfim a criar a riqueza de que tanto se orgulhou no passado...
17. Laurent Gbagbo não quis perceber que os Estados que hoje temos resultam de múltiplos processos de transformação; que, inclusive, muitas das etnias que agora se reivindicam de autóctones, são originárias de outras paragens – dos fenómenos migratórios que foram uma constante no nosso continente. Ele não conseguiu compreender que a própria história da humanidade está toda ela assente sobre as migrações.
2. Um dia, ao regressarmos ao hotel, o Hotel Sebroko, situado nos arredores de Abidjan, depois das aulas, deparámo-nos com um camião acidentado na estrada. Chama-nos de imediato a atenção não só a aparatosa imagem do acidente mas, também, o ar de profundo desalento do motorista. De entre nós, alguém inquiriu, então, o motorista do nosso autocarro sobre o porquê do estado de alma do homem do camião. A resposta saiu sem dificuldade, e foi dada nos seguintes termos: “Na Costa do Marfim, quem danifica um bem público comete um crime que é severamente punido! Esse motorista já sabe o que o espera – seguramente, vai para a prisão!”. A resposta colocou os angolanos da comitiva, a olharmos uns para os outros, num misto de espanto e curiosidade…
3. Na altura, antes, e mesmo ainda mais tarde, em Luanda, quem partisse um carro do Estado era “premiado”, quase de imediato, com um outro carro. Aqui entre nós, o infractor geralmente não sofria quaisquer consequências.
4. Estávamos, pois, na época da impunidade, uma impunidade que fazia parte do nosso quotidiano. Os bens do Estado eram sistematicamente maltratados, usados com descuido e sem respeito. Por detrás desse comportamento estava a ideia de que, sendo bens do povo, e sendo o povo uma figura incorpórea e abstracta, não havia autoridade moral para se punir.
5. Um outro facto ainda despertou a minha curiosidade, na Costa do Marfim: o modo como as crianças das escolas do ensino de base trajavam. As crianças vestiam de forma elegante e bem cuidada – fossem eles rapazes, fossem elas raparigas. Isso evidenciava a preocupação das autoridades para com a educação e o ensino. Mostrava também que o orçamento para a educação tinha carácter prioritário e era gasto de modo correcto e eficaz. O ensino de base era o espelho.
6. Guardo ainda na memória a imagem da liberdade com que se circulava em frente à Grande Maison do Presidente Félix Houphouët-Boigny, em Yamoussoukro, a cidade que tinha sido no ano anterior elevada à categoria de capital política do país. Yamoussoukro deixara para Abidjan o título de capital económica e comercial. Em Yamoussoukro era permitido fotografar a Grande Maison, assim como os crocodilos do lago artificial situado mesmo junto ao Palácio.
7. Tenho mais outras memórias agradáveis daquele país. Por vezes, conto-as aos meus amigos. Talvez um dia me decida a trazê-las para o papel, para as partilhar com mais gente… Será também uma forma de as rememorar.
8. A Costa do Marfim foi um país próspero e organizado, mas, agora, caiu na desordem social e na confusão política. Já é uma má referência para o nosso continente.
9. Na Costa do Marfim, percebi facilmente o porquê de aquele país se ter transformado num pólo de atracção para as populações dos países limítrofes. Cerca de 1/3 dos seus habitantes provinham do Mali, do Burkina Faso, do Ghana, da Libéria ou da Guiné-Conacry. Os africanos das redondezas buscavam lá, sobretudo, trabalho. Alguns eram refugiados políticos que vinham fugidos de países onde campeava a intolerância. Por isso, para uns o país era um bom porto de abrigo, já que tinha uma economia muito próspera; para outros, não obstante vigorasse um regime de partido único, havia, ainda assim, alguma segurança e, sobretudo, paz.
10. A Costa do Marfim era o maior exportador mundial de cacau, o terceiro maior exportador de café, um grande exportador de madeira, também de óleo de palma, algodão, copra, abacaxi, banana, açúcar, etc. Tinha um bom sistema financeiro e sentia-se que a classe média estava em expansão. Contudo, nas actividades directamente ligadas à produção, quer agrícola, quer industrial, era notória uma forte dependência da força-de-trabalho estrangeira. O comércio era dominado por originários da Ásia, em especial, por libaneses.
11. Ouvi dizer que o Presidente Félix Houphouët-Boigny achava que o pior que poderia acontecer à Costa do Marfim seria lançar-se também na exploração petrolífera, porque o petróleo mataria as restantes actividades económicas, muito em especial, a agricultura e a indústria transformadora. Tinha como referência o que aconteceu com a Nigéria que, de país agrícola, um verdadeiro celeiro agrícola, passara a país importador de alimentos. Era isto que fazia com que o Presidente Félix Houphouët-Boigny estimulasse os jovens quadros cedendo-lhes terra e criando facilidades de créditos para a produção agrícola. Nesse sentido ele era, pois, um visionário.
12. Félix Houphouët-Boigny governou em regime de partido único desde a independência, em 1960, até ao ano de 1990. Depois abriu o país ao multipartidarismo e ganhou as eleições de 1990. Morreu em Dezembro de 1993. Com a sua morte, o castelo de cartas desmoronou.
13. O sucessor de Félix Houphouët-Boigny, Henri Konan Bedié aguentou-se no poder até 1999, quando foi derrubado por meio de um golpe militar comandado pelo general Robert Gueï que, por sua vez, foi assassinado. Seguiu-se Laurent Gbagbo, em 2000, e a guerra civil, e a separação, na prática, entre o norte, muçulmano, e o sul, cristão ou animista.
14. O norte, a área por excelência virada para a produção agrícola, é a zona de maior influência do ex-primeiro-ministro Alassane Ouattara, declarado vencedor do recente pleito eleitoral pela Comissão Eleitoral Independente. Aqui começa, pois, o problema que se arrasta até ao presente momento.
15. A guerra civil entre o norte e o sul teve como detonador uma lei que Laurent Gbagbo fez aprovar, aparentemente para impedir a eleição dos estrangeiros. Perante essa lei, Alassane Ouattara seria considerado estrangeiro, pois é filho de mãe burkinabe – mesmo que o pai seja marfinense.
16. Assim, Laurent Gbagbo retirava do caminho o seu adversário mais temido. Limitava também os direitos a outros milhões de marfinenses que são o fruto das migrações. Fez ainda tábua rasa do contributo desses homens e mulheres que ajudaram a Costa do Marfim a criar a riqueza de que tanto se orgulhou no passado...
17. Laurent Gbagbo não quis perceber que os Estados que hoje temos resultam de múltiplos processos de transformação; que, inclusive, muitas das etnias que agora se reivindicam de autóctones, são originárias de outras paragens – dos fenómenos migratórios que foram uma constante no nosso continente. Ele não conseguiu compreender que a própria história da humanidade está toda ela assente sobre as migrações.
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