1. No
último sábado, chamou a minha particular atenção, uma crónica enviada à LAC
pelo jornalista e académico angolano José Gonçalves. Sobretudo, pelo seu título
bastante sugestivo: “Dois Equívocos”.
2. O
primeiro dos “equívocos” prendia-se com uma das razões apresentadas pelas
nossas autoridades para a recente prisão de dezena e meia de jovens activistas,
acusados de estarem “a atentar contra a ordem constitucional estabelecida”,
preparando um “Golpe de Estado”, e, inclusive, urdindo “um atentado contra a
vida do Chefe de Estado”. O outro “equívoco”, já mais ligado ao exterior,
prendia-se com uma declaração proferida pelo Presidente norte-americano, Barack
Obama, aquando da visita à América da Presidente do Brasil, Dilma Roussef.
3. Vou
começar pelo segundo “equívoco”, assinalado por José Gonçalves. Não sei com que
intenção, no encontro com Dilma Roussef, o Presidente norte-americano disse que
o Brasil era “uma potência global”, facto que despertou a atenção de José
Gonçalves, para quem o Brasil ainda está longe de ser tomado como “uma potência
global”. Para sustentar a sua asserção, destacou a actual situação económica do
Brasil - com um assinalável mau desempenho - juntando a isso os sucessivos
escândalos, envolvendo não apenas figuras do mundo económico e empresarial como,
também, político que o abalam e desacreditam o país perante a comunidade
internacional. Para o jornalista e académico, para ser “potência global” o
Brasil teria que ter outros condimentos, como os que possuem, por exemplo, os
países do G7, e poucos países mais, como a China e a Rússia.
4. Segundo
José Gonçalves, o segundo “equívoco”, o de Barack Obama, podia ter um efeito
positivo para a imagem e, sobretudo, para o próprio “ego” de Dilma Roussef, ela
que, no seu país, tem uma popularidade demasiado em baixo, com, inclusive,
manifestações públicas pedindo a sua destituição do cargo. Por outro lado, se
questionado pelos seus pares na política norte-americana, Barack Obama defender-se-ia
dizendo que teriam sido meras palavras de circunstância, para agradar a
visitante. Far-lhe-ia bem tal “piropo”, sobretudo, depois do “desaguisado” desencadeado
pela denunciou da espionagem aos meios de comunicação de Dilma Rousseff, feita pela
Agência Norte-americana de Segurança (NSA), e também a outros importantes
políticos brasileiros ou mesmo figuras de destaque do mundo empresarial. O
segundo “equívoco” não é, pois, nada por aí além. É apenas um “fait-divers”…
5. O
primeiro “equívoco” - o de cá de dentro - esse, sim, é elevado à breca… As
autoridades angolanas denunciaram a preparação de um “golpe de Estado”,
perpetrado por um diminuto conjunto de jovens activistas. Quinze no total. Pelo
menos, até agora. Os jovens activistas estão detidos em cadeias fora de Luanda
– talvez para os afastar de possíveis cúmplices. Sim, porque um “golpe de
Estado” com apenas 15 jovens é algo mirabolante… Tinha que haver mais
implicados, pelo menos indirectamente…
6. Ah!…
Havia já uma “Lista subversiva” integrando os próximos órgãos governativos a
todos os níveis e em todas instâncias do poder… A “Lista” contemplaria um
suposto “Governo” (que já circula profusamente nas redes sociais), de que eu
seria o “Vice-Presidente” (com pomposas “competências executivas”), chefiado
por um religioso actualmente a contas com a justiça, depois do seu envolvimento
com as autoridades num confronto bélico que ficou marcado por muitas mortes. O
dito religioso sairia, pois, dos calabouços para a ribalta da política. Que nem
Nelson Mandela…
7. Na
ocasião da detenção, segundo informações postas a correr, os jovens “sediciosos”
estariam a estudar, em ambiente colectivo, um livro inspirado denominado “Da Ditadura à Democracia”, com destaque
internacional, da autoria do norte-americano, Gene Sharp, hoje conhecido em certos
círculos internacionais como o “Maquiavel do Pacifismo”.
8. Na
sua habitual crónica de Sábado aos microfones da LAC (Luanda Antena Comercial),
o jornalista e académico José Gonçalves disse: “O Senhor Gene Sharp é tido como
a personificação da resistência serena…; Ele advoga métodos pacíficos de
resistência contra regimes autoritários ou mesmo ditatoriais…; A sua base de
inspiração são os métodos recomendados por Mahatma Ghandi, por Martin Luther
King, e por outros pacifistas de renome universal e que deixaram bem vincada a
sua marca na história da Luta pelos Direitos Humanos e dos Povos.”
9. Quem
se inspira em Gene Sharp dificilmente pode, pois, ser tido como apologista de
métodos violentos para as transformações sociais… Tem que haver aqui, pois, um
grande “equívoco”… Algo pode não estar a bater certo: jovens “golpistas”
inspirados num pacifista, mesmo que tido por alguns como “O Maquiavel do
Pacifismo”? Torna-se difícil engolir este “equívoco”…
10.
O “equívoco” só pode estar no título
da obra ou, sobretudo, na expressão “derrubar ditaduras”… Veio-me, então, à
memória, um episódio que se passou comigo, já lá vão muitos anos…
11.
Em 1970, estava preso no Tarrafal e a
minha mãe decidiu enviar para mim alguns dos meus livros de estudo. Eu era Estudante
de Medicina, quando a PIDE decidiu prender-me e aos meus Companheiros. Movida
da sua habitual e característica boa-fé, a minha mãe conseguir fazer chegar ao
Tarrafal um lote de livros, entre os quais um livro de Biologia Médica
intitulado “A Célula”.
12.
O Director do Campo do Tarrafal,
Eduardo Vieira Fontes, era uma personalidade controversa: católico fervoroso –
dizia que, antes de tomar qualquer decisão, aconselhava-se com Deus… Por isso,
tinha sempre consigo um terso; gostava de ler, mas sempre com o cuidado de
“saber escolher” os livros, quer para ele, quer para os presos…; profundamente
anticomunista – dizia que o comunismo era contra a própria natureza humana…;
não fugia sistematicamente ao diálogo político, que ele aceitava, mas
demarcando-se sempre de nós, dizendo, por exemplo, que não se considerava um “fascista”
mas, sim, um cristão-democrata.
13.
“Fascista, eu não sou” – dizia,
peremptório, o Director do Campo. Que era exagerado apelidar o regime vigente
de fascista: “O Senhor Presidente do Conselho, o Professor Marcelo Caetano é,
sim, um cristão”. E ele, “Dadinho” Fontes, era um democrata inspirado nos
cânones do cristianismo. Estava, assim, o assunto resolvido, com os campos
políticos e ideológicos demarcados. “Sr. Justino Pinto de Andrade, espero que
entenda o que nos diferencia!...” – Dizia o Director.
14.
A minha querida mãe, sempre muito
preocupada com o bem-estar dos seus dois filhos presos - eu e o Vicente - enviou-nos
livros, entre os quais, como já disse, um livro de Biologia Médica, intitulado “A
Célula”.
15.
Muito precipitadamente, o “Dadinho”
Fontes, Director do Campo, decidiu apreender “A Célula”. Deixou, porém, entrar
os outros. Logo, desconfiei do “equívoco” do Dadinho Fontes.
16.
Fiz uma “pretensão” – era assim que
se denominava a ficha que tínhamos que preencher para sermos recebidos pelo
Director. Fui recebido pelo “Dadinho” Fontes também por outros motivos, como,
por exemplo, para reclamar sobre a qualidade da comida ou outras coisas.
Embora, desta vez, a “maka” fosse o livro…
17.
Recebido pelo “Dadinho”,
perguntei-lhe do porquê ele ter retido o livro que a minha mãe tão custosamente
me queria fazer chegar. O “Dadinho” respondeu-me, no estilo que lhe era característico:
“Sr. Justino Pinto de Andrade, por aquilo que leio nas cartas que a vossa mãe
vos envia, tenho-a como uma senhora muito sensata… Até nutro por ela estima
pessoal. Só não consigo compreender como é que ela, sabendo que o objectivo da
vossa prisão não é propriamente castigar-vos, mas, sim, recuperar-vos, envia
para o Justino um livro de teor profundamente comunista, onde se dão instruções
sobre como se organizarem células para a subversão”. “Não posso, pois, aceitar
que tenha na sua cela um livro desse teor. Porque este não é o espaço para
vocês continuarem a organizar células…”
18.
O “Dadinho” Fontes, Director do
Campo, que até era um homem lido, com formação superior, estava a meter o pé na
poça… Muito diplomaticamente – mesmo na cadeia, nunca perdi o “fair-play” - fiz
compreender ao Director “Dadinho” Fontes que o livro nada tinha de subversivo;
que era apenas um livro de Medicina e que, portanto; não iria perturbar em nada
o nosso “processo de recuperação”…
19.
Sempre que, por qualquer motivo, eu fizesse
uma “pretensão”, ele dizia: “Vocês têm que sair daqui “recuperados para a
sociedade, livres dos vossos ideais subversivos… ”.
20.
Enfim, este foi, pois, um dos
primeiros grandes “equívocos” com que me defrontei ao longo da minha vida. Mas,
com o decorrer do tempo, e com tudo a que tenho assistido na vida, já não tenho
dúvidas: Afinal, a nossa vida está muito pejada de “equívocos”…
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