quarta-feira, 24 de junho de 2015

MORREU VITÓRIA DE ALMEIDA E SOUSA


1.  Morreu Vitória de Almeida e Sousa, médica e ilustre combatente pela nossa independência, também uma convicta lutadora pelas nossas liberdades fundamentais. Ela era a viúva de Joaquim Pinto de Andrade, meu querido familiar e companheiro de luta.

 

2.  O interior da Igreja do Carmo, de onde partiram as suas cinzas para o Cemitério do Alto das Cruzes, ostentava um placard que resumia de forma lapidar o modo como ela apreciada pela comunidade cristã: “OBRIGADO Dr.ª VITÓRIA, MÃE, MÉDICA, PROFESSORA, CATEQUISTA E CONSELHEIRA INABALÁVEL”.

 

3.  A Igreja do Carmo tem um enorme simbolismo para a chamada velha sociedade crioula de Luanda, dado que se situa nos arredores da Ingombota, o local onde, eventualmente, se terá começado a gerar, de modo mais profundo e mais sistemático, o fenómeno da miscigenação cultural na cidade de Luanda.

 

4.  A Igreja do Carmo - de um saíram as cinzas da Vitória de Almeida e Sousa, assim como os restos mortais do Joaquim Pinto de Andrade e do seu irmão, Mário Pinto de Andrade, e, no passado, de outros descendentes das velhas famílias crioulas de Luanda - tem uma história riquíssima que remonta ao século XVII. Foi construída pelos missionários carmelitas – daí o nome Igreja do Carmo - no quadro de um complexo que incluía também um Convento.

 

5.  Os missionários carmelitas vieram para Angola a convite da então Regente do Reino de Portugal, D. Luísa de Gusmão, que instruiu o Governador-Geral para conceder apoio material ao projecto. Contou ainda com os generosos contributos dos crentes.

 

6.  A edificação deste lindo edifício demorou várias dezenas de anos, sendo já no século XVIII que lhe foram aplicados os azulejos que hoje revestem as suas paredes.

 

7.  Ao longo do tempo, a Igreja do Carmo tem sido objecto de várias intervenções para a sua restauração, a última das quais, creio, terá recebido o contributo de entidades portuguesas.

 

8.  Enquanto assistia à missa fúnebre em memória da Vitória, fui contemplando a beleza da nave da Igreja com o tecto todo ele pintado com motivos fitomórficos e painéis figurando santos, bem como os seus belos azulejos de tons azuis e brancos. Tudo isso trouxe-me à memória um determinado período da minha infância, quando, ainda menino, frequentei, por apenas um ano lectivo, a então “Escola 7”. Nessa altura, ao fim do dia, ia à Igreja do Carmo receber lições de religião e moral.

 

9.  Pela morte da Vitória, o meu companheiro Adolfo Maria escreveu um bonito texto ilustrando mais percursos da sua vida: os seus dados biográficos mais primários, como a data e o local de nascimento, a filiação, também o seu percurso académico. Depois, as partes mais relevantes da sua carreira como activista e militante pela causa da nossa independência. E o modo como a sua vida se cruzou com a daquele que se tronou seu esposo - afinal, o seu companheiro de uma longa vida: Joaquim Pinto de Andrade.

 

10.            Guardo da Vitória uma memória inestimável: o modo como ela soube dignificar a causa que abraçáramos, aquando da sua prisão em Portugal. Em 1965, juntamente com o meu primo Henrique Guerra e outros nacionalistas, foram encarcerados pela polícia política portuguesa, a PIDE. A Vitória passou mais de dois anos na cadeia e o Henrique Guerra gramou 8 anos e meio, sendo libertado já muito próximo do 25 de Abril de 1974, quando, finalmente, começou a mudar o rumo da nossa história.

 

11.           Libertada, a Vitória prosseguiu a sua actividade militante, articulando contactos entre os presos que estavam nas diversas prisões em Portugal, mas, também, connosco que estávamos no Tarrafal. Recolhia ofertas de solidariedade que nos fazia chegar. Nessas ofertas de solidariedade, introduzia, clandestinamente, informações sobre a situação política e militar no terreno da luta.

 

12.           Recordo-me de, um dia, ela ter introduzido, minuciosamente, em cigarros, um pequeno relatório sobre o evoluir da nossa luta, retirando de cada um deles o respectivo tabaco – restando apenas a sua porção mais superficial. O material chegou ao Tarrafal e o chefe da guarda, o Chefe Bonança, foi pessoalmente fazer a sua entrega à nossa cela – a Caserna 3. Depois de entregar a encomenda vinda de Lisboa – da Tó e, seguramente, de outras pessoas com ela articuladas -, o Chefe Bonança permaneceu na conversa. O Chico Caetano, nosso companheiro, ávido de fumar, abriu ali mesmo junto do Chefe Bonança um maço de cigarros, começando a fumar o que lhe veio à mão.

 

13.           O Chico Caetano era um companheiro com características muito particulares, duas das quais a precipitação nos actos e o vício do tabaco. Deu, pois, as primeiras baforadas no cigarro, sentindo, em vez de sabor típico do tabaco queimado, um outro sabor qualquer. O Chico estava, afinal, a queimar o papel clandestino que a Vitória tinha escondido, bem enroladinho dentro do cigarro. Para nosso desencanto, o precipitado do Chico Caetano queimava uma das preciosas mensagens que a nossa solidária companheira Vitória ardilosamente colocara no interior de alguns cigarros.

 

14.           O Chefe Bonança apercebeu-se de que algo estranho se estava a passar com o Chico Caetano… Um de nós – já não me lembro quem – conseguiu acalmar o Chico Caetano, que protestava pelo facto de o cigarro ter um fumo estranho… Levou-o para a casa de banho da cela, a tempo de ainda conseguir salvar uma parte da mensagem. Depois de o Chefe Bonança sair da cela, tivemos a árdua tarefa de tentar deduzir o conteúdo da parte queimada da mensagem. Fizemo-lo, articulando as partes salvas. Uma das boas novidades que a Vitória nos dava era de que havia uma forte possibilidade de o Viriato da Cruz regressar ao Movimento, deixando o seu exílio na China.

 

15.           Aquilo que parecia ser uma feliz notícia não se consumou: o Viriato da Cruz, por quem tínhamos uma enorme estima e respeito, acabou por morrer na China. E eu voltei a encontrar a Vitória de Almeida e Sousa, juntamente com o Joaquim, já em Brazzaville, pouco depois do 25 de Abril, iniciando uma nova etapa das nossas lutas.

 

16.           Ontem, dia 09 de Junho, fui despedir-me dela, na Igreja do Carmo e, depois, no Cemitério do Alto das Cruzes, perante a indiferença das autoridades deste país que ela também contribuiu para que se tornasse independente. E sobre a sua morte repousou um silêncio oficial sintomático…

Sem comentários:

Enviar um comentário