1. Morreu Vitória de Almeida e Sousa,
médica e ilustre combatente pela nossa independência, também uma convicta
lutadora pelas nossas liberdades fundamentais. Ela era a viúva de Joaquim Pinto
de Andrade, meu querido familiar e companheiro de luta.
2. O interior da Igreja do Carmo, de
onde partiram as suas cinzas para o Cemitério do Alto das Cruzes, ostentava um
placard que resumia de forma lapidar o modo como ela apreciada pela comunidade
cristã: “OBRIGADO Dr.ª VITÓRIA, MÃE, MÉDICA, PROFESSORA, CATEQUISTA E CONSELHEIRA
INABALÁVEL”.
3. A Igreja do Carmo tem um enorme
simbolismo para a chamada velha sociedade crioula de Luanda, dado que se situa nos
arredores da Ingombota, o local onde, eventualmente, se terá começado a gerar,
de modo mais profundo e mais sistemático, o fenómeno da miscigenação cultural
na cidade de Luanda.
4. A Igreja do Carmo - de um saíram as
cinzas da Vitória de Almeida e Sousa, assim como os restos mortais do Joaquim
Pinto de Andrade e do seu irmão, Mário Pinto de Andrade, e, no passado, de
outros descendentes das velhas famílias crioulas de Luanda - tem uma história
riquíssima que remonta ao século XVII. Foi construída pelos missionários
carmelitas – daí o nome Igreja do Carmo - no quadro de um complexo que incluía também
um Convento.
5. Os missionários carmelitas vieram
para Angola a convite da então Regente do Reino de Portugal, D. Luísa de
Gusmão, que instruiu o Governador-Geral para conceder apoio material ao
projecto. Contou ainda com os generosos contributos dos crentes.
6. A edificação deste lindo edifício
demorou várias dezenas de anos, sendo já no século XVIII que lhe foram
aplicados os azulejos que hoje revestem as suas paredes.
7. Ao longo do tempo, a Igreja do Carmo
tem sido objecto de várias intervenções para a sua restauração, a última das
quais, creio, terá recebido o contributo de entidades portuguesas.
8. Enquanto assistia à missa fúnebre em
memória da Vitória, fui contemplando a beleza da nave da Igreja com o tecto
todo ele pintado com motivos fitomórficos e painéis figurando santos, bem como
os seus belos azulejos de tons azuis e brancos. Tudo isso trouxe-me à memória
um determinado período da minha infância, quando, ainda menino, frequentei, por
apenas um ano lectivo, a então “Escola 7”. Nessa altura, ao fim do dia, ia à
Igreja do Carmo receber lições de religião e moral.
9. Pela morte da Vitória, o meu
companheiro Adolfo Maria escreveu um bonito texto ilustrando mais percursos da
sua vida: os seus dados biográficos mais primários, como a data e o local de nascimento,
a filiação, também o seu percurso académico. Depois, as partes mais relevantes
da sua carreira como activista e militante pela causa da nossa independência. E
o modo como a sua vida se cruzou com a daquele que se tronou seu esposo - afinal,
o seu companheiro de uma longa vida: Joaquim Pinto de Andrade.
10.
Guardo da Vitória uma memória
inestimável: o modo como ela soube dignificar a causa que abraçáramos, aquando
da sua prisão em Portugal. Em 1965, juntamente com o meu primo Henrique Guerra
e outros nacionalistas, foram encarcerados pela polícia política portuguesa, a
PIDE. A Vitória passou mais de dois anos na cadeia e o Henrique Guerra gramou 8
anos e meio, sendo libertado já muito próximo do 25 de Abril de 1974, quando,
finalmente, começou a mudar o rumo da nossa história.
11.
Libertada, a Vitória prosseguiu a sua actividade militante, articulando
contactos entre os presos que estavam nas diversas prisões em Portugal, mas,
também, connosco que estávamos no Tarrafal. Recolhia ofertas de solidariedade
que nos fazia chegar. Nessas ofertas de solidariedade, introduzia, clandestinamente,
informações sobre a situação política e militar no terreno da luta.
12.
Recordo-me de, um dia, ela ter introduzido, minuciosamente, em cigarros, um
pequeno relatório sobre o evoluir da nossa luta, retirando de cada um deles o
respectivo tabaco – restando apenas a sua porção mais superficial. O material
chegou ao Tarrafal e o chefe da guarda, o Chefe Bonança, foi pessoalmente fazer
a sua entrega à nossa cela – a Caserna 3. Depois de entregar a encomenda vinda
de Lisboa – da Tó e, seguramente, de outras pessoas com ela articuladas -, o
Chefe Bonança permaneceu na conversa. O Chico Caetano, nosso companheiro, ávido
de fumar, abriu ali mesmo junto do Chefe Bonança um maço de cigarros, começando
a fumar o que lhe veio à mão.
13.
O Chico Caetano era um companheiro com características muito
particulares, duas das quais a precipitação nos actos e o vício do tabaco. Deu,
pois, as primeiras baforadas no cigarro, sentindo, em vez de sabor típico do tabaco
queimado, um outro sabor qualquer. O Chico estava, afinal, a queimar o papel
clandestino que a Vitória tinha escondido, bem enroladinho dentro do cigarro. Para
nosso desencanto, o precipitado do Chico Caetano queimava uma das preciosas
mensagens que a nossa solidária companheira Vitória ardilosamente colocara no
interior de alguns cigarros.
14.
O Chefe Bonança apercebeu-se de que algo estranho se estava a passar com
o Chico Caetano… Um de nós – já não me lembro quem – conseguiu acalmar o Chico
Caetano, que protestava pelo facto de o cigarro ter um fumo estranho… Levou-o
para a casa de banho da cela, a tempo de ainda conseguir salvar uma parte da
mensagem. Depois de o Chefe Bonança sair da cela, tivemos a árdua tarefa de
tentar deduzir o conteúdo da parte queimada da mensagem. Fizemo-lo, articulando
as partes salvas. Uma das boas novidades que a Vitória nos dava era de que
havia uma forte possibilidade de o Viriato da Cruz regressar ao Movimento, deixando
o seu exílio na China.
15.
Aquilo que parecia ser uma feliz notícia não se consumou: o Viriato da
Cruz, por quem tínhamos uma enorme estima e respeito, acabou por morrer na
China. E eu voltei a encontrar a Vitória de Almeida e Sousa, juntamente com o
Joaquim, já em Brazzaville, pouco depois do 25 de Abril, iniciando uma nova
etapa das nossas lutas.
16.
Ontem, dia 09 de Junho, fui despedir-me dela, na Igreja do Carmo e,
depois, no Cemitério do Alto das Cruzes, perante a indiferença das autoridades
deste país que ela também contribuiu para que se tornasse independente. E sobre
a sua morte repousou um silêncio oficial sintomático…
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