1. Este texto tem como pano de fundo a
passagem de mais um aniversário da instituição da Organização de Unidades
Africana, OUA, criada e 25 de Maio de 1963, em Addis Abeba, na Etiópia, substituída,
a 9 de Julho de 2002, por uma nova organização continental, a União Africana.
2. Por altura da sua
institucionalização, a Carta Magna da OUA definiu um quadro de objectivos que
passo a resumir:
i)
Promoção
da unidade e solidariedade entre os Estados Africanos;
ii)
Coordenação
e intensificação da cooperação entre os Estados Africanos, com vista a melhorar
as condições de vida dos seus povos;
iii)
Defesa
da soberania, integridade territorial e independência dos Estados Africanos;
iv)
Erradicação
de todas a formas de colonialismo no nosso continente;
v)
Promoção
da cooperação internacional, respeitando a Carta das Nações Unidas e a
Declaração Universal dos Direitos Humanos;
vi)
Coordenação
e harmonização das políticas dos Estados Africanos nas esferas política,
diplomática, económica, educacional, cultural, de saúde e bem-estar, também no
âmbito da ciência e técnica e de defesa.
3. A escolha da Etiópia para ser a sede da
OUA não obedeceu a um mero acaso. Pretendeu-se, assim, homenagear o país que,
para alguns, é o Estado africano mais antigo. Recordo que a sua existência,
enquanto Estado, remonta ao ano 940 a.C. – Tem, portanto, 2994 anos.
4. Como sabemos, a Conferência de Berlim
de 1885 desencadeou o fenómeno que é hoje conhecido como “A Partilha de
África”, um processo que se tornou responsável por um dos períodos mais
dramáticos que o nosso continente conheceu, uma vez que estimulou as chamadas
“guerras de ocupação” que configuraram muitas das actuais fronteiras africanas,
na sua maioria desobedecendo à repartição étnica e sociológica dos nossos povos.
Apenas 2 países africanos - a Etiópia e a Libéria - escaparam a uma tal repartição,
de que foram absolutos beneficiários algumas potências europeias.
5. A Libéria, um dos Estados africanos
mais antigos, foi fundada por ex-escravos enviados, como colonos, de volta para
África. Devo, porém, dizer que a Libéria não era um espaço desabitado, pois já lá
existiam outros povos – fala-se mesmo em 16 etnias autóctones – um facto seguramente
responsável por alguns dos problemas que moldam até hoje o quadro dos seus
conflitos modernos.
6. A Libéria existe como um Estado
independente desde 1847, pela mão desses mesmos colonos africanos e seus
descendentes, cerca de 60 anos depois de os EUA – de onde eles haviam saído - terem
proclamado a sua independência.
7. Mas a independência da Libéria não se
traduziu, de imediato, no direito de cidadania para todos os seus habitantes. Só
mais de 50 depois (1904) é que foi conferido às etnias locais tal direito. Voltemos
ainda, por alguns momentos, à Etiópia.
8. Na ânsia de se afirmarem como
potência colonial em África, os italianos, que já dominavam a Eritreia desde
1870, pretenderam também dominar a Etiópia. Porém, em 1896, foram derrotados
pelo exército do Imperador etíope Memelik II, na célebre batalha de Adwa.
9. A Etiópia guarda mais outra
singularidade que talvez tenha justificado plenamente a sua condição de sede
continental da OUA e, agora, da União Africana. Ela foi um dos 3 países
africanos que, em 1919, participaram na fundação da Liga das Nações – também
chamada “Sociedade das Nações” - a estrutura política internacional, criada
pelo “Tratado de Versalhes”, na sequência do fim da Primeira Guerra Mundial, e
que antecedeu a constituição, em 1945, da Organização das Nações Unidas. Os
outros dois países africanos foram a União Sul-Africana – representada pelo seu
Primeiro-Ministro, Jan Smuts – e a Libéria.
10.
A Etiópia é, pois, um país de grande referência no nosso continente. Porém,
alguns historiadores contestam a primazia dada à Etiópia como o primeiro Estado
Africano, e fazem-no com base na história do Egipto.
11.
Os antigos habitantes do Egipto atribuíam a unificação do seu Estado ao
lendário Imperador Menés, Rei do Baixo Egipto e conquistador do Alto Egipto. Em
3000 a.C., ele terá formado um único Reino com capital em Mênfis, elevando-se,
assim, à condição de uma espécie de semi-deus. O Imperador Menés é, por isso,
considerado o primeiro Faraó do Egipto.
12.
Neste momento em que homenageamos a criação da nossa Organização
continental, de modo algum podíamos deixar de recordar o simbolismo de alguns
dos países que a integram.
13.
Hoje o nosso continente possui já 55 países independentes, 17 dos quais
proclamadas em 1960 - por tal facto, glorificado como o “Ano de África”.
14.
Das 17 proclamações do ano de 1960, 14 eram ex-colónias francesas. Antes
desse ano de glória, já se haviam tornado independentes, o Ghana (1957) e a
Guiné-Conacri (1958). Depois de 1960, o processo de proclamação das
independências africanas ainda durou mais de 2 décadas, culminando com o
estabelecimento do Zimbabwe (ex-Rodésia do Sul) (1980) e o fim do Apartheid na
África do Sul (1994). A independência das ex-colónias portuguesas só veio a ter
lugar na década de 70.
15.
Julgo que vale a pena fazer uma, mesmo que breve, referência a dois casos
particulares: a Somália e o Sahara Ocidental. Da Somália, pode até dizer-se que
deixou de ser um verdadeiro Estado, sem estruturas adequadas. Desintegrou-se na
sequência do fim do regime ditatorial de Mohamed Siad Barre. Por sua vez, no
Sahara Ocidental, prevalece uma ocupação ilegítima por parte de outro Estado
africano, o Marrocos, configurando, pois, uma situação de colonialismo
intra-africano.
16.
Avancemos, agora, para uma pequena
radiografia da política no nosso continente.
17.
A esmagadora maioria dos sistemas de governo prevalecentes em África são repúblicas
vivendo sob regimes presidencialistas. É também o nosso caso que se acentuou
com a entrada em vigor da nova Constituição.
18.
As monarquias africanas têm expressão meramente residual: Marrocos, Lesotho
e Suazilândia. Porém, existem outras monarquias, mas não como estados
soberanos. São monarquias intraestados, devendo, por isso, ser objecto de uma
outra abordagem.
19.
Nos Estados africanos, as transições democráticas estáveis e duradouras são
pouco expressivas. Nos últimos tempos temos assistido até a certas “sucessões
monárquicas” em Estados africanos republicanos, com o poder a transitar de pais
para filhos, mesmo que em alguns casos se procure criar uma aparente
legitimação pelo voto popular.
20.
Já é inegável essa “sucessão dinástica”. Mas é igualmente inegável que,
na maioria dos casos, a “sucessão” tem lugar dentro do mesmo partido político.
Ou seja, o poder mantém-se na mesma esfera partidária, o que significa que não
tem havido uma mudança do centro de gravidade do poder.
21.
Conheço políticos e analistas políticos que saúdam esse modelo de
“sucessão”, argumentando que isso até promove uma expedita “renovação das
elites políticas”.
22.
Para mim, não se trata qualquer “renovação das elites políticas” mas,
sim, de uma disfarçada “reciclagem das mesmas elites governantes”, que se
limitam a rodar dentro de um círculo restrito, não alterando de modo
substancial a correlação de forças interna. Isso desvirtua a essência da
democracia, que se alimenta, precisamente, da alternância partidária.
23.
A “reciclagem das elites governantes” torna secundário o papel dos
partidos políticos no jogo democrático, e consolida a ideia de que apenas um partido
tem vocação e reais condições para o exercício do poder. E também de que
somente a sua elite é competente para o fazer.
24.
É verdade que, na Europa Democrática, o poder político tem, sobretudo, rodado
também em torno de um círculo central, no qual preponderam os partidos
social-democratas e os partidos da chamada direita democrática. Por vezes,
fazendo alianças pontuais com pequenas formações partidárias um pouco mais à
direita ou um pouco mais à esquerda. Mas, na verdade, mesmo quando fazem tais alianças,
é o chamado “centrão” que marca o compasso do tempo político na Europa.
25.
Neste momento em que o quadro
económico e social europeu mudou, o “centrão” mostra-se bastante adverso a
novas abordagens e perspectivas apresentadas por forças que até então estiveram
longe do exercício do poder. Os próximos tempos podem reservar interessantes
surpresas.
26.
Como já disse, em África, salvo raras excepções, quase não se assiste a
qualquer rotação entre partidos políticos. Inclusive, há Presidentes que se
encontram no exercício do poder há várias dezenas de anos, tais como José
Eduardo dos Santos (Angola) e Robert Gabriel Mugabe (Zimbabwe). Trata-se,
portanto, do princípio da fixação do poder político numa única pessoa. Outros Estados
africanos para lá caminham, com a agora mais do que evidente “tentação para a
alteração das Constituições” que permitam terceiros e mais mandatos
presidenciais.
27.
A África Central e a Região dos Grandes Lagos caminham nesse sentido, o
que talvez nos ajude a compreender a razão de serem áreas de grande
instabilidade política e social – a par da África do Norte de onde foram desalojados
velhos ditadores e se instalou, por enquanto, uma assinalável anarquia.
28.
Se é verdade que a maioria dos países africanos são repúblicas e regimes
claramente presidencialistas, também é verdade que as democracias
parlamentaristas têm pouca expressão no nosso continente. Cabo Verde e Ilhas
Maurícias são casos interessantes de regimes parlamentaristas onde o processo democrático
tem funcionado bem e com alternância do poder.
29.
Em Cabo Verde, coexistem perfeitamente a figura do Presidente da
República de um partido com um Governo de uma cor política distinta. Nenhum
poder secundariza o outro.
30.
Na Nigéria, ascendeu recentemente e democraticamente ao poder um
Presidente da República proveniente de uma formação política da oposição, o que
nos permite olhar para esse país com alguma expectativa. A Nigéria tem, também,
a particularidade de ser uma Federação de Estados, um modelo que não se
disseminou, e que poderia, eventualmente, ajudar a resolver algumas das
dissonâncias que prevalecem em África.
31.
A África do Sul optou por um regime parlamentarista mitigado. Ou, se
preferirmos, por um presidencialismo mitigado, onde o Presidente da República é,
ao mesmo tempo, Chefe de Estado e do Governo, governo que ele escolhe. Mas o
Presidente é eleito pelo Parlamento. Dado que o ANC tem tido sucessivas
maiorias absolutas, o Presidente provém sempre deste partido.
32.
O poder legislativo na África do Sul é constituído por duas Câmaras: A
Assembleia Nacional, em que metade dos seus membros é escolhida em listas
partidárias nacionais, e a outra metade provém de listas partidárias
provinciais. Além da Assembleia Nacional o poder legislativo integra ainda o
Conselho Nacional das Provinciais.
33.
Gostaria ainda de fazer uma breve incursão sobre o caso do Botswana.
Trata-se de um país africano bastante extenso e interiorizado, mas muito pouco
povoado. Todavia, do ponto de vista político, tem-se mostrado estável, sem conhecer
graves convulsões: Realiza, desde 1965, e regularmente, eleições multipartidárias
não contestadas.
34.
O poder político mantém-se nas mãos do mesmo Partido, o Partido
Democrático do Botswana. Porém, essa relativa estabilidade política pode também
ter muito a ver com o facto de o Botswana ser um país etnicamente muito
homogêneo, com os tswanas a corresponderem a cerca de 90% da população. A
homogeneização étnica pode ser visto como um factor facilita a coesão social e
dissuasor de tensões políticas.
35.
A participação das mulheres no poder político é outra dimensão que merece
ser abordada, sobretudo quando se busca a criação de sociedades mais justas e
mais equilibradas.
36.
A África do Sul é dos países mais bem posicionados no que respeita à
participação feminina nos órgãos legislativos, pois possui cerca 45% de
mulheres no Parlamento. É o quinto país do mundo nesse ranking, um ranking que
é encabeçado pelo Ruanda (63,8%). Nos 10 primeiros lugares ao nível mundial
figuram ainda mais 2 países africanos: a Seicheles (43,4%) e o Senegal (43,3%).
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